#16 - DE ONDE VEM A VERGONHA?
- Deixa Eu Pensar
- 24 de mai. de 2024
- 5 min de leitura
Mas afinal, o que seria um “sem-vergonha”?
Já parou pra pensar o que é essa força invisível que trava seus músculos, inibe sua fala, enche sua mente de dúvidas e impede algum tipo de ação? Uma força que te faz sentir mal, um incômodo difícil de lidar.
Que planta é essa que todo mundo tem e desabrocha suas flores nos momentos mais inconvenientes?
Assim como outros temas que levam para uma abstração bem intrigante, a vergonha já foi muito pensada no decorrer dos séculos e acredito que vale a pena passar rapidamente por alguns conceitos filosóficos já colocados na mesa.
Aristóteles definiu em sua obra Ética a Nicômaco que a vergonha é uma emoção que está estritamente relacionada à reputação e à honra, deixando claro que é uma reação ao reconhecimento individual por ter agido de forma indigna, principalmente na presença de outras pessoas.
Sartre, em O Ser e o Nada, entende a vergonha como emoção fundamental para nos ajudar a revelar a natureza de nossa consciência e o nosso ser-para-todos. Ela surge quando nos vemos através dos olhos de terceiros. Uma definição coerente com sua filosofia existencialista.
Nietzsche e Foucault têm pensamentos muitos semelhantes em relação à vergonha, tratando o tema com uma perspectiva de controle social, disciplina e opressão. Assim como Simone de Beauvoir também tratou, mas com foco na opressão da mulher.
Kant vai dizer que a vergonha é uma resposta ao desrespeito das próprias normas morais e ao comportamento que não está de acordo com a dignidade racional do ser humano.
Eu poderia continuar citando várias outras definições de nomes muito famosos. Mas por mais que todas as definições tratem a vergonha de forma bem diferente, é interessante perceber como todas acabam possuindo o mesmo alicerce: a dinâmica social.
A vergonha só existe, e só poderia mesmo existir, porque vivemos em sociedade. Ela é fruto de ações e reações que são observadas. Se não houvesse observadores, a vergonha não teria motivos para dar frutos. Ou teria? Você tem vergonha daquilo que faz quando ninguém está olhando?
A verdade é que a resposta pode ser “sim”. A vergonha pode surgir mesmo sem a presença do observador, o que nos mostra que essa não é a única estrutura do alicerce. Existe algo a mais que impregna muito mais forte a presença da vergonha em nossas ações, ou falta delas: as regras do jogo.
Aquele manual volumoso que vem dentro da caixa e explica exatamente como executar todos os passos para uma partida perfeita, do jeito que o criador do jogo pensou. Se você não tem vergonha de ficar criando regras aleatórias no Uno para prejudicar os amiguinhos, talvez devesse ter.
As regras do jogo são as diretrizes socialmente aceitas que determinado indivíduo deve seguir dentro de um grupo para que os membros desse grupo o entendam como um igual. São regras tão claras e tantas vezes marteladas em nossas rotinas que muitas vezes o agir fora de uma regra já gera em nós mesmos uma estranheza, mesmo sem o observador. Aquela sensação de estar fazendo algo errado, de não estar em conformidade com o que é aceito, uma culpa.
A vergonha é um fenômeno nuclear, ou seja, ela depende exclusivamente do núcleo social em que uma pessoa está inserida para ocorrer. Exatamente porque cada núcleo tem suas próprias regras do jogo. Uma pessoa pode agir de uma determinada maneira em uma festa com amigos, mas ter vergonha de agir da mesma forma no ambiente profissional. Assistir a um filme com cenas sensuais pode ser bem natural quando você o assiste com seu parceiro ou parceira, mas pode trazer vergonha, constrangimento, quando assiste com seus pais.
Além disso, a percepção dessas regras é dinâmica e pode mudar dependendo do contexto que você vive dentro daquele núcleo. Talvez você tenha vergonha de falar em reuniões do trabalho por algum tipo de medo de julgamento, de dizer algo errado, de estar sendo avaliado. Mas talvez, se você estiver de aviso prévio, já com outro emprego garantido, essa reunião já não tenha essa pressão que vai causar algum tipo de vergonha ao falar.
Mesmo entendendo essa triangulação entre observador, regras do jogo e percepção individual dessas regras, não temos como não perceber como os núcleos agem em conformidade para garantir algum tipo de controle de comportamento social. Quando as pessoas não estão de acordo com os comportamentos aceitos, elas são rotuladas e ninguém quer ser rotulado. Pelo menos não negativamente, aos olhos da sociedade. E isso gera o loop que faz com que as pessoas, ao invés de vencerem a vergonha, se conformem mais com as regras, agindo sempre dentro do esperado pelos criadores das regras.
Particularmente, não consigo, a partir dessa análise, não concordar com Nietzsche, Foucault e Simone de Beauvoir. Sempre que existe vergonha, junto deve vir a pergunta: em relação a qual comportamento que não é bem aceito? E por que não é bem aceito? Se existe um comportamento certo e um errado, alguém assim o definiu, e se o definiu tinha um porquê de o definir, logo o controle e a disciplina são estabelecidos a partir de algum interesse.
Afinal, respondendo a pergunta inicial, o “sem-vergonha” nada mais é do que aquele que age fora de algum comportamento social esperado. Contraria as regras, ataca a moral pré-estabelecida. E isso traz instabilidade para o núcleo social em que vive e isso não pode ser aceito. Então será rotulado e julgado. E todos que vivem dentro do mesmo núcleo entenderão que aquele comportamento não pode ser repetido e devem se sentir mal caso o façam.
Mas como lidar com a vergonha? Aquela, que nos trava, que nos impede de agir de uma forma que nem é tão fora do comum assim, mas mesmo assim está ligada aos observadores e nos dá calafrios pela exposição que estaremos sofrendo.
Lidar com a vergonha é um processo interno bem complexo. Não existe uma fórmula, até porque se eu chegasse com alguma solução esse podcast não seria sobre filosofia, seria sobre auto-ajuda. Mas podemos explorar duas situações onde a vergonha é vencida dentro dos seus núcleos.
A primeira está relacionada ao status dentro do grupo. Quanto maior o status que um indivíduo alcançar, mais intimidade ele terá com os outros membros e mais poder e influência ele exercerá dentro do grupo. Essa confiança que é desenvolvida a partir de uma repetição de situações vai inibindo aos poucos aquela vergonha inicial, de quando tudo era novo e tudo que você fizesse poderia ser julgado. Mesmo assim, o status não garante o controle total do sentimento de vergonha, uma vez que talvez o fato de escalar cada vez mais dentro daquele núcleo significa estar cada vez mais imerso nas condições aceitas pelo grupo. O que automaticamente pode levar a um aumento do medo de ir contra as regras daquele jogo.
A segunda situação é conseguir, a partir de muito esforço de consciência e reflexão, não se importar com a convenção que o grupo estabelece. Essa é provavelmente mais difícil que a primeira, mas está mais próxima de como Nietzsche e Simone de Beauvoir acreditam que a vergonha deve ser superada. A partir de uma afirmação de si mesmo, independente das regras sociais que oprimem o indivíduo.
De qualquer forma, o que vale é o esforço de tentar trazer à consciência as razões por trás daquele sentimento de vergonha quando ele surgir. Talvez entendendo cada vez mais de onde essas raízes brotam, fique cada vez mais fácil cortar a muda antes que ela floresça e impeça que você deixe de fazer, falar, se comportar da forma que realmente gostaria.
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